Espaços urbanos

Espaços urbanos
Catedral Nossa Senhora da Conceição - foto Robispierre Giuliani

domingo, 18 de maio de 2025

Católicos X Metodistas

Nestes tempos de escolha do novo Papa, momento de grande visibilidade para a Igreja Católica, vamos rememorar um embate que se verificou em Cachoeira, iniciado pelo Padre Luiz Scortegagna, pároco da Igreja Matriz, que provocou reação do Reverendo Eduardo Menna Barreto Jayme, pastor da Igreja Metodista.

Pe. Luiz Scortegagna - 1923
- Acervo Família Abreu

O caso se deu em maio de 1918, exatamente no ano em que os metodistas estavam arregimentando forças para erguer seu templo em Cachoeira. Na edição do dia 22 de maio, O Commercio publicou, na Seção Livre, um comunicado do Padre Luiz Scortegagna que referia ter o Pastor E. Menna Barreto Jayme dirigido a muitos católicos cachoeirenses cartas circulares "pedindo óbolos para construção, nesta cidade, de um templo metodista." No mesmo comunicado, o Pe. Scortegagna prevenia aos fiéis que os metodistas faziam "parte de uma das trezentas e tantas seitas norte-americanas, diferentes umas das outras e todas inimigas da nossa santa religião católica, sempre imutável na substância, a quem o nosso querido Brasil deve o glorioso passado." E conclui o escrito acrescentando: "Disse Nosso Senhor Jesus Cristo (Mat. cap. 12, versículo 30): Quem não é comigo, é contra mim."

O Reverendo Eduardo Menna Barreto Jayme não deixou por menos e mandou publicar, no mesmo jornal, edição de 29 de maio, sua reação às palavras do Pe. Scortegagna, também na Seção Livre. Na sua mensagem, dirigiu-se ao "amável" Pe. Luiz Scortegagna e ao boletim que mandou distribuir na cidade  sobre fazerem os metodistas "parte de uma das trezentas e tantas seitas norte-americanas", dizendo que era muito natural que as pessoas contribuíssem para a construção de uma igreja, independente do credo. E disse mais ao padre: que "milhões de dólares" estavam "enviando os norte-americanos para socorrer, generosamente, os católicos romanos da Bélgica e da Itália, com evangélica tolerância dos metodistas". Segue na sua defesa afirmando que o denominacionalismo* protestante não provava que os metodistas não eram bem intencionados e sinceros e que os povos protestantes se caracterizavam pela "liberdade de consciência" e que, naquela hora "de suprema dor na Europa", se irmanavam com os povos católicos. 

A suprema dor referida pelo Pastor Eduardo M. B. Jayme representava o horror que a Europa estava vivendo com a Primeira Guerra Mundial. E para demonstrar mais seu incômodo com as palavras publicadas pelo padre católico, afirmou não ser a Igreja Metodista uma seita norte-americana e que a própria Igreja Católica tinha ordens que "nem em tudo estiveram acordes", como os dominicanos e franciscanos que se dividiram quase cinco séculos na discussão do dogma de Nossa Senhora. Para arrematar, invocando também as escrituras, disse: "Ide, pregai o Evangelho a toda criatura", dizendo ter o padre quebrado o mandamento "Não dirás falso testemunho contra o teu próximo", do capítulo 20 do Êxodo. E, no fecho do seu escrito, deixou bem claro o porquê das publicações: "Sua Revma., o amável vigário desta paróquia, está despeitadíssimo!"  
                                                                                                                    
A julgar pelo cessar de notícias nas próximas edições do jornal O Commercio, parece que nenhum dos dois condutores locais da Igreja Católica e da Igreja Metodista quis jogar mais lenha na fogueira. O fato é que, lançada a pedra fundamental do templo metodista, em 6 de abril de 1919, foi o mesmo solenemente inaugurado em 31 de agosto daquele ano, com comparecimento numeroso. 

Igreja Metodista original - Rua Moron - MMEL


Na notícia que circulou no O Commercio de 3 de setembro de 1919, a informação de que "foi construído com toda a solidez, de modo a constituir uma obra durável, tendo a nossa população contribuído com uma soma considerável para o custeio das despesas de edificação" pode sugerir que de fato os metodistas conquistaram muitos apoiadores ao seu intento. Por aqueles tempos, a comunidade metodista de Cachoeira era considerável, o que explica a rapidez com que a obra foi concluída. 

Comunidade metodista reunida à frente da igreja - MMEL

Em tempos de ecumenismo, muito provavelmente a atitude dos dois condutores das comunidades católica e metodista não teria lugar nos dias de hoje.

*Denominacionalismo: reconhecimento da  legitimidade de diferentes grupos cristãos, com as suas próprias crenças, práticas e tradições, como parte da mesma fé, segundo a Wikipédia.
 

sexta-feira, 25 de abril de 2025

João Domingos

A história que trago hoje é de família. 

Há 90 anos, num 25 de abril de 1935, João Domingos Machado deixava este mundo. Era jovem, cheio de vida e sonhos, especialmente porque tinha uma pequena e amorosa família, composta da mulher e do filho pequenino. A morte tirou-lhe todas as oportunidades, inclusive a de poder contar a própria história.

João Domingos Machado


Para homenageá-lo, reproduzo abaixo esta crônica de memória, originalmente publicada na Coletânea Escritores da Aurora, da Academia Cachoeirense de Letras. 

João Domingos

Mirian R. M. Ritzel

João Domingos faz parte daquelas pessoas que eu gostaria de ter conhecido. Pouco sei dele e este pouco vinha das memórias de outros, cujos destinos o tempo concretizou há eras. Portanto, sua imagem provém de fotografias em preto-e-branco, posadas para ambulantes que percorriam os rincões do Rio Grande com uma velha máquina em tripé e um pano pintado que usavam de fundo. Quando a foto era “batida”, uma explosão se anunciava pelo estouro e a fumaça. Mas que perfeição de registros! O moço era bem apanhado nos traços, cabelo farto, olhar marcante. Os ternos sugerem que o tecido de que eram confeccionados fosse o linho, denunciado pelo amarrotado. As mãos parecem grandes para o restante do corpo. Talvez efeito do muito que trabalharam.

João Domingos era arrimo de irmãos que ficaram na orfandade ainda crianças. Cedo teve que buscar trabalho para levar o pão de cada dia àqueles infelizes desassistidos: Ana Francisca, Antônio e José. Não era fácil a vida de órfãos no começo do século XX, pois o país não tinha ainda adotado a legislação que disciplinou o trabalho e deu garantias aos trabalhadores e seus dependentes. O que sei de sua história é que bem jovem trabalhava numa empresa de arroz da zona distrital do município de Cachoeira, granjeando algum sucesso, pois atingiu o posto de capataz.

Também não sei como nem quando, João Domingos se interessou numa mocinha bonita, de estatura pequena, tez morena clara, cabelos lisos e escorridos, bem apropriados para o corte “à la garçonne”. Seu nome era Dorildes. Como quase todas as mulheres de seu tempo, Dorildes era analfabeta, mas sabia costurar. Será que o lindo vestido com que aparece nas fotos, assim como os das suas irmãs, eram feitio dela? O modelo, igual para todas, era moda nos anos 1920, bem ao estilo das chamadas “melindrosas”. De corte reto, o vestido ganhava graça na faixa que amarrava a saia nos quadris. Também um frufru terminando em laço no decote ajudava a alongar a silhueta. Nas pernas, reluzentes meias de seda e, para arrematar, sapatos de tira e fivela sobre o dorso dos pés.

Dorildes e João Domingos
João Domingos, Dorildes e a irmã Aurora da Luz

Creio que ambos se apaixonaram. Nunca ninguém me contou isto, mas as esparsas histórias que ouvi sobre eles sinalizam que havia amor na união que se concretizou depois. A data do casamento, como foi, onde aconteceu ficaram perdidos em memórias que não chegaram até mim. O fato é que em 22 de maio de 1932 Dorildes deu à luz o filho Waldicyr. Menino moreno, forte. Muitas vezes a jovem mãe ficou sozinha com o filho, pois cedo João Domingos tomava rumo da empresa, onde as tarefas nas lavouras de arroz o aguardavam. Será que ele agenciava trabalhadores, fazia os devidos registros e os orientava? Ou tinha tarefas mais práticas, como consertar equipamentos, abrir taipas, semear ou colher o grão? Muitas vezes me angustio com tantas perguntas e quase nenhuma resposta.

O fato é que ela contou para sua nora que João Domingos nunca voltava para casa sem um mimo. Nem que fosse um buquê destas singelas flores que nascem no meio do capim dos caminhos. De mãos abanando ele não chegava.

Numa noite de muito temporal, frio e ventania, como é comum no descompassado tempo do Rio Grande, Dorildes perdeu o pai. João Domingos assumiu o compromisso de providenciar tudo o que fosse necessário para as exéquias do sogro. Andou de um lado para o outro, tomou toda a chuva, tiritou de frio, mas cumpriu suas obrigações, dando sepultura digna ao pai de sua Dorildes.

A juventude não é garantia de nada, especialmente da saúde. Os problemas respiratórios logo vieram para João Domingos. Primeiro foi a tosse, o peito roncando, as secreções que logo se tomaram de sangue. Vieram para Cachoeira buscar tratamento médico. O diagnóstico veio logo: pleurisia. Difícil enfermidade para tempos em que os recursos da medicina eram escassos, os remédios fracos. O quadro se agravou e uma cirurgia foi feita pelos doutores José Félix Garcia e David Fontoura de Barcellos. Provavelmente uma drenagem de líquido dos pulmões. Surtiu algum efeito, apesar das dores e das febres. Com o auxílio da esperança.

João Domingos morreu. Nem a juventude, nem o amor de sua Dorildes,  nem o desvelo dos médicos resolveram a situação. Mais uma vez a espada da orfandade sobre o seu destino, ou melhor, sobre o destino do seu único filho. Chegaram a levar o menino para ver o pai no esquife, gravando na memória do pequenino a única imagem que carregou de João Domingos pelo resto de seus dias...

Esta é uma história cheia de lacunas. Mais do que isto, esta é uma história que mostra o quão difícil é reconstituir algo de que não se tem ninguém que possa juntar os fios da meada ou fornecer pistas para completar o quadro de uma vida, de várias vidas, da história de uma família.

João Domingos era o meu avô. E eu não posso, por mais que queira, completar a sua história.

2/9/2024

segunda-feira, 31 de março de 2025

A Cachoeira de 1915

Em tempos muito diferentes dos nossos, quando comunicação instantânea e redes sociais estavam muito longe de se tornarem ferramentas do cotidiano, jornais, periódicos, relatórios de governantes e almanaques costumavam publicar dados estatísticos dos municípios, nos quais se incluíam de aspectos urbanos a aspectos morais. 

O jornal O Commercio, edição de 5 de janeiro de 1916, traz dados do município de Cachoeira preparados e difundidos através do Relatório de Estatística da Intendência Municipal relativos ao ano de 1915, quando estava no posto de mandatário municipal o vice-intendente em exercício, Capitão Francisco Gama. O encarregado do serviço de estatística era então Mário Godoy Ilha, que os apresentou em 17 de setembro de 1915. 

O relatório diz o que segue:

ESTATÍSTICA PREDIAL: A cidade, com as duas zonas – urbana e suburbana – tinha, em 1.º de setembro de 1914, 1.281 prédios. Dessa data à sua igual de 1915 construíram-se 71, somando, portanto, a 1.352 as casas existentes.


Aspecto da Rua 7 de Setembro em 1914 - MMEL

Uma confrontação interessante dão as cifras abaixo dos prédios construídos nos últimos anos:

1910 – 16

1911 – 44

1912 – 66

1913 – 98

1914 – 50

1915 – 54

Soma: 328

Os construídos em 1915 são: de madeira 32, de alvenaria 22; nesse ano fizeram-se ainda 25 aumentos, reconstruções e reparos, 10 galpões e nove muros.

ESTATÍSTICA DEMOGRÁFICA: População – era em 1913, a 31 de dezembro, de 44.239 almas, a qual adicionando-se 1.526 unidades, do excesso fisiológico, atinge para 1915 a 45.765, sendo 23.027 homens e 22.738.

Pelos distritos, esta população está assim distribuída:

1.º distrito (sede e arrabaldes) – 10.016

2.º distrito – 4.611

3.º distrito – 2.862

4.º distrito – 4.778

5.º distrito – 6.841

6.º distrito – 9.666

7.º distrito – 6.991

Soma: 45.765

Tomando por base a densidade predial de 6,6 encontrada no ano anterior, tem a cidade 8.923 almas.

Registro Civil – registraram-se em 1914 1.928 nascimentos contra 1.478 de 1913, ou seja, mais 450. Eram homens 999 e mulheres 929.

Pelos distritos municipais, os nascimentos ficaram distribuídos deste modo:

1.º distrito – 834

2.º distrito – 84

3.º distrito – (não informou)

4.º distrito – 65

5.º distrito – 285

6.º distrito – 474

7.º distrito – 186

Soma: 1928

Quanto à filiação:

São filhos legítimos – 1.678

São filhos ilegítimos – 250

Soma: 1928

Nacionalidade dos pais:

Brasileiro e brasileira – 1.506

Brasileiro e alemã – 23

Brasileiro e diversas – 5

Alemão e brasileira – 43

Alemão e alemã – 54

Alemão e diversas – 4

Italiano e brasileira – 11

Italiano e italiana – 251

Diversos e brasileira – 22

Diversos e diversas – 10

Soma: 1.928

Nasceram:

De dia - 988

De noite – 940

Soma: 1.928 

Realizaram-se 330 casamentos ou menos 92, sendo 439 nubentes alfabetos e 221 analfabetos.

A mortalidade decresceu sensivelmente, fato digno de nota que evidencia a excelência do estado sanitário do município.

Óbitos de 1912 – 602

Óbitos de 1913 – 498

Óbitos de 1914 – 402

Por distrito, os óbitos deste último ano estão assim subdivididos:

1.º distrito – 120 homens, 97 mulheres, total 317

2.º distrito – 3 homens, 2 mulheres, total 5

3.º distrito – (não informou)

4.º distrito – 3 homens, 5 mulheres, total 8

5.º distrito – 31 homens, 31 mulheres, total 62

6.º distrito – 36 homens, 34 mulheres, total 70

7.º distrito – 24 homens, 16 mulheres, total 40

Das 402 pessoas que faleceram em 1914, 244 eram solteiros, 113 casados, 44 viúvos e um de estado ignorado.

Quanto à nacionalidade:

Brasileiros – 302

Italianos – 53

Alemães – 39

Família do austríaco Ernesto Müller foi uma das que entrou na estatística
- Acervo Família Ernesto Müller

Diversos – 7

Ignorado – 1

Soma: 402

Na cidade observaram-se as mesmas condições de letalidade:

Em 1912 – 231

Em 1913 – 219

Em 1914 – 217

As classes de moléstias que mais concorreram para o obituário geral foram as gerais, com o coeficiente de 52 casos e delas a tuberculose com 27.

ESTATÍSTICA ECONÔMICA: A área de agricultura está calculada em 200.000 hectares e computado o valor da produção em 11.500:000$000. Os vegetais, que na safra de 1914/1915 acusam maiores colheitas, são os seguintes:

Arroz – 431.328 sacos

Feijão – 60.500 sacos

Milho – 530.000 sacos [sic] *Deve ser 53.000

Fumo – 80.000 arrobas

Lavoura de arroz com calha de irrigação - MMEL

A exportação municipal do ano de 1914 é representada pelo valor oficial de 5.839:932$000, muito inferior em confronto com a do período passado. Pelo seu valor comercial, o verdadeiro, pois é certo que os gêneros tiveram grande alta, a exportação, sem exagero, produziu 9.650:000$.

A riqueza pastoril, de 17.540:091$500, parte essencial da vida financeira do município, é assim representada:

Vacum – 305.120 cabeças

Cavalar – 46.500 cabeças

Muar – 3.580 cabeças

Lanígero – 33.225 cabeças

Suínos – 41.030 cabeças

Caprino – 1.414 cabeças

Soma: 430.869

ESTATÍSTICA INTELECTUAL:

Instrução: o ensino é ministrado por um estabelecimento de cursos secundários, 36 escolas estaduais, 27 municipais, 24 particulares subvencionadas pelo município e 30 particulares isolados. A frequência tem progredido, ano a ano. A matrícula de 1915 em todos os estabelecimentos escolares era de 4.589 alunos, sendo 828 dos municipais, 681 dos subvencionados, 1.476 dos estaduais e 1.599 dos particulares.

Colégio Alemão-Brasileiro, inaugurado em 1914 - MMEL

Havendo uma população com idade escolar de 9.449, ainda 4.860 crianças não frequentam escolas, ou seja a alta percental de 56%.

ESTATÍSTICA MORAL:

Criminalidade: À cadeia civil desta cidade foram recolhidos, de setembro de 1914 a setembro de 1915, pelas causas adiante enumeradas, 121 indivíduos, ou menos 86, se confrontarmos com o igual período anterior. Assim obtemos:

Homicídios - 9 em 1913/1914 e 5 em 1914/1915

Tratativas de homicídio - nenhuma em 1913/1914 e 4 em 1914/1915

Lesões corporais – 5 em 1913/1914 e 18 em 1914/1915

Defloramento – 1 em 1913/1914 e 4 em 1914/1915

Roubo – 9 em 1913/1914 e nenhum em 1914/1915

Furto – 3 em 1913/1914 e 11 em 1914/1915

Moeda falsa – 1 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Desordem – 113 em 1913/1914 e 57 em 1914/1915

Desobediência – 20 em 1913/1914 e 11 em 1914/1915

Ofensas à moral – 4 em 1913/1914 e 3 em 1914/1915

Embriaguez – 21 em 1913/1914 e 6 em 1914/1915

Vadiagem – 4 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Loucura – 4 em 1913/1914 e 2 em 1914/1915

Averiguações – 13 em 1913/1914 e nenhuma em 1914/1915

Soma: 207 em 1913/1914 e 121 em 1914/1915

 (Fonte: Jornal O Commercio, Cachoeira, Ano XVII, N.º 840, de 5 de janeiro de 1916, p. 1)

Como se vê, pelos dados acima transcritos, a seção de estatística da Intendência fazia uma radiografia do município, servindo-se para isto das informações recebidas dos subintendentes dos distritos. Aliás, percebe-se a enorme importância da zona distrital, ou colonial, perdida pelo município a partir da segunda metade da década de 1950, o que justifica e materializa o descenso populacional e o decréscimo econômico de Cachoeira verificado a partir de então.

Relatórios como este são capazes de transportar no tempo, assim como reforçar o quanto as ações do passado ditam o presente e o futuro.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Coliseu Cachoeirense X Cine-Teatro Coliseu

Muitas vezes as pessoas fazem confusão entre dois cinemas que existiram em Cachoeira, muito provavelmente porque ambos tinham Coliseu no nome. A localização também colabora para reforçar o imbróglio, pois  ambos estavam situados na Rua 7 de Setembro. Ainda que um tivesse que morrer para o outro poder nascer, por um tempo houve convivência marcada pela desigualdade. Enquanto um era erguido com tudo que havia de mais moderno para uma casa de cinema, o outro estava instalado em um barracão que foi sendo paulatinamente abandonado à própria sorte. 

Mas havia outro traço em comum entre os dois cinemas: o último proprietário do mais velho, associado a outro empreendedor, lançou-se à construção do mais novo, cujo prédio ainda existe e é tombado como patrimônio histórico-cultural. 

Henrique Comassetto - Coleção Família Carvalho Bernardes

O primeiro, chamado Coliseu Cachoeirense, com origem no antigo Cinema Familiar, fundado em 1910 pelos irmãos Pohlmann, ocupava um barracão postado na esquina da Praça José Bonifácio com a Rua Andrade Neves. Sua entrada se dava pela Avenida das Paineiras, que era o trecho da Rua 7 de Setembro fronteiro à Praça José Bonifácio, então circundada por fileira destas árvores, daí a denominação popular.

Avenida das Paineiras - Coleção Claiton Nazar

O segundo, chamado Cine-Teatro Coliseu, foi inaugurado em 17 de fevereiro de 1938 e pertencia aos sócios Henrique Comassetto, que havia sido o último proprietário do Coliseu Cachoeirense, e Algemiro Carvalho.  Mas o nome Coliseu não parece ter sido a primeira opção para o novo empreendimento, pois a imprensa cachoeirense, em 1937, publicou enquete para os leitores sugerirem nomes para a casa de espetáculo em construção, estando dentre as sugestões a de Cinema Central.

Avenida das Paineiras movimentada pelo Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar

Interior do Cinema Coliseu Cachoeirense (1922) - foto Benjamin Camozato


Uma das últimas fotos do Coliseu Cachoeirense - Coleção Claiton Nazar


O prefeito Reinaldo Roesch descerrando a fita do novo Cine-Teatro Coliseu - 17/2/1938 - MMEL

Cine-Teatro Coliseu - Coleção Aldo Penna

Escadaria de entrada do Cine-Teatro Coliseu no dia do seu primeiro aniversário - 17/2/1939 - MMEL

Interior do Cine-Teatro Coliseu - 1960 - Coleção Família Carvalho Bernardes

Letreiro do tombado Cine-Teatro Coliseu - foto Renato Thomsen
                    

O fato é que o zum-zum-zum da inauguração de um novo e luxuoso cinema fez com que o velho Coliseu Cachoeirense, já bastante depauperado, ficasse quase às moscas, sem maiores atrações, sem nenhuma manutenção.

Para demonstrar, de forma poética, o drama do velho barracão, outrora tão cheio de vida e ponto de atração da cidade, foi publicado no jornal O Coringa*, de Cachoeira, no dia 1.º de janeiro de 1937, o seguinte lamento:         

Lamento do Coliseu Cachoeirense

Gente ingrata

Noite de lua cheia.

Por volta das 10 horas, a massa humana que enchia o Coliseu jorrou pelas bocas, imprimindo fugaz animação às ruas do centro.

Do banco onde me achava, vi passarem apressados alguns pares, a rápida quietude em que tudo de novo caiu mais realçou a sensação de tristeza que havia em torno.

O luar e o calor eram meus companheiros.

Aproximei-me do grotesco casarão, cujo telhado irradiava com luxos de abundância os reflexos do satélite noturno.

Parecia-me estar só na praça; subitamente ouvi estranho soluçar e percebi que alguém, próximo, mal retinha sentido pranto; às vezes dizia baixinho algumas palavras, cujo sentido não conseguia apreender.

Rebusquei em torno: ninguém.

- Quem está chorando? – Perguntei a esmo, e – pasmem-se – do interior do velho prédio uma voz cavernosa, soturna, me atendeu:

- Eu, moço; não posso mais suportar em silêncio a ingratidão que me fazem...

- Mas pobre Coliseu, que se passa contigo? Por que chora? – Ah! o senhor não é daqui, e por isso não poderia me compreender; sente-se aí nesse banco que lhe contarei minha história. Quero desabafar tanta mágoa que me vai n’alma e só lhe peço julgar se tenho ou não razão! Estava intrigadíssimo: fiz-lhe a vontade e ele prosseguiu, num tom cavo, repassado de dor.

... – Há vinte e poucos anos aqui me puseram os homens desta terra e a minha aparição foi saudada com entusiasmo por todos, crianças, velhos e principalmente moços, pois eu representava a alegria mesma, a diversão indispensável, o melhor lugar onde passar algumas horas satisfeito.

Vivi muitos anos de felicidade; traziam-me sempre enfeitado, limpinho e me via prestigiado pelos bons cachoeirenses; ansiava para que viesse logo a noite a fim de recolher em meu bojo o povo ao qual dispensava um amor quase paternal, tanto o queria...

Mas vieram os anos; começaram, aos poucos, a se descuidarem de minhas paredes, do assoalho, poltronas mal substituídas; nenhuma pintura nova, limpezas mal feitas, até que, - supremo ultraje – as pulgas invadiram-me o corpo todo, transformando meu viver num constante desespero.

E,  não é só: as chuvas conseguiram franquear passagem pela minha cúpula; roeram-me os meus alicerces e denegriram minhas paredes. Eu, sozinho, lutei desesperadamente contra essa invasão de elementos destruidores; resisti quanto pude à sanha demolidora, na esperança de um socorro oportuno de meus patrões, até que, - ironia cruel – numa terrível noite, por uma conversa que ouvi, fiquei sabendo que eles haviam decidido maldosamente o meu desaparecimento!

Abafou um soluço que mais parecia um trovejar longínquo e retornou, magoado:

- Vou morrer, seu moço, e por quê?... Porque estou velho e não sirvo mais, não?... Mas quanta gente há por aí que tanto mais estimada se torna quanto mais envelhece? O tio Luiz, por exemplo... ou será por que ocupo muito espaço?...  mas... e o Ernesto Krieger?...

O senhor não acha que será crueldade? Depois se ao menos eu pudesse dizer como o general romano – “ingrata gente, não possuirás meus ossos” – seria um consolozinho, mas tenho quase certeza que o Nicolau já contou minhas tábuas, para ver por quantos meses ainda servirei de combustível...

Por cúmulo, venho suportando as zombarias do que me vai substituir; o miserável não fora de pedra e cal, tem-se mostrado de um cinismo desumano para comigo e, à medida que se alçam suas paredes, lança-me indiretas e ri-se com desdém de minha decrepitude, orgulhoso de sua estrutura.

O vil nem se apercebe de que um dia, quiçá daqui a quantos anos, ele também... mas... não falemos dele.

Recolheu-se por um momento e, como em delíquio, pôs-se a engrolar, em surdina, palavras ininteligíveis; ora eu percebia um sentido lamento, ora uma injúria acovardada aos seus algozes.

Quis tirá-lo desse devaneio, para que prosseguisse, quando surgiu à esquina do Província o Eliseu e outros patativos.

Estava desfeita a confidência; em vão aguardei que se fosse dali; em vão tentei reanimar aquele arcabouço que me falara; mergulhara no indiferentismo das coisas inanimadas.

Vai esperar a morte...

E a morte veio, o barracão foi abaixo e hoje só restam dele meia dúzia de fotografias e algum bom número de reclames das velhas fitas, muitas delas ainda do tempo do cinema mudo, quando o pianista Curt Dreyer dava o tom à história que rodava na telona. 

E o mais interessante é que o Coliseu que ganhou voz e chorou suas mágoas ao solitário homem sentado no banco da praça vaticinou que o novo que se erguia um dia poderia passar pelo que ele estava passando. Foi a mais pura verdade! Por anos a fio o Cine-Teatro Coliseu ficou em flagrante perigo de desmoronar ou ser demolido, o que felizmente não aconteceu, permitindo que hoje contemos a história dos dois cinemas de nome Coliseu, cada um com seu valor e importância. Cada um marcando para sempre a memória do cinema em Cachoeira do Sul.

* Em próxima postagem, informações sobre o jornal O Coringa. Aguarde